terça-feira, 28 de julho de 2020

Padrastos das Águas


“Jeruzali”, pov
oado pacato da pequena cidade de “Nova Renascença”, sertão nordestino, foi palco de uma peleja por conta da transposição do Rio São Francisco cujas águas passariam próximas daquele lugar.
De um lado estava “Barbabás”, ex-sindicalista, católico não praticante, conhecido também como “alminha”, apelido adquirido desde a visita ao bispo da região e de um pedido de bênçãos que o levava a acreditar ser a alma mais honesta do mundo. Do outro, “Messias”, protestante raiz, ex-combatente, mas que jamais teria ido à guerra se dizia à boca pequena nas redondezas. O único fato verdadeiro era que nos tempos de quartel tinha sido expulso juntamente com Barbabás por conta da quartelada que ambos se envolveram. Amigos de farda e da prefeita de Nova Renascença, alcunha “Pedalinho”, porque possuía uma bicicleta de nome “Querida” com a qual fazia visitas aos seus eleitores. Pois bem, os dois se apresentavam para os (as) vilarinhos (as) como inimigos ferrenhos na política, provocando uma divisão de águas no eleitorado local.
Como em todo lugarejo existe um espaço para “debates políticos” e comentário dos “fuxicos do dia”, por lá não era diferente, havia uma árvore frondosa chamada de “Sinédrio”. De grande sombreamento, era o local que abrigava às mais calorosas prosas do cotidiano. Frequentador assíduo, “Ponto Pilatos”, cognome adquirido por sua capacidade de apartar brigas e pela participação frequente nas conversas diárias, foi incumbido de resolver à zanga entre “Barbabás” e “Messias”. A discórdia que envolvia os dois gravitava na “paternidade da canalização da água do Rio São Francisco para o vilarejo”. Sempre precavido Ponto Pilatos tinha à mão uma vara de quixaba, caso a situação fugisse do controle, dizia ele: “levo o castigo e o remédio juntos”. Então, no dia e hora marcados se pôs a ouvir “os padroeiros das águas do lugarejo”.
Barbabás alegou a ordem alfabética para primeiro falar, tinha o B no nome, vinha antes do M de Messias, então, disse em um tom provocativo: “Como sou o primeiro tanto na letra como no nome, começo, e não vou descascar laranjas enquanto falo. Fui eu que havia dito que cedo ou tarde traria água. Também sou amigo da prefeita pedalinho e tive a iniciativa de conversar e explicar toda a situação hídrica daqui. Se a época foram feitos dez orçamentos para a canalização, o objetivo era baratear à obra para sobrar dinheiro para investir nas ‘olimpíadas escolares’ e na ‘copinha de futebol’, que infelizmente gerou grandes gastos e atraso. Porém, agora é chegado o momento de mudar o curso do Rio São Francisco e trazer a tão sonhada água". 
 Messias, tomando a palavra em seguida, sacou sua “arminha”, sim, todo protestante que se preze anda sempre acompanhado de uma Bíblia de Bolso, dizia. E, sem pestanejar, e nem consultar o livro sagrado, rasgou uma indireta: “Nem toda barba nos torna Moisés, e nem todas águas são do Mar Vermelho”. Ponto Pilatos sentido que o clima iria esquentar e a sarça das intrigas poderia pegar fogo e incendiar o sinédrio, ergueu à vara de quixaba e gritou: “Calma! Mantenham o juiz no lugar!”. Na realidade queria dizer o juízo.
Também sou amigo da prefeita, continuou Messias, participei das olimpíadas e da copinha. Tenho um filho que é vereador, apesar das más línguas da oposição falarem que possui um laranjal irregular. É dele com minha participação a autoria do projeto para trazer água para cá, somos da ala que apóia à prefeita pedalinho. Como todos sabem o mandato do vereador “Dudinha”, nome carinhoso que chamo Eduardo é a prova de bala em honestidade, concluiu Messias.
Após a fala das duas autarquias do povoado, uma voz clama no deserto da vila e do meio do povo que ali se ajuntavam, era “João Luz”, que vinha com seu candeeiro aceso em plena luz do dia a profetizar: “A prefeita vai sofrer ‘impitima’ (impeachment) meu povo! Barbabás amiguinho da ‘impitimada’ ganhou uma secretaria com as bênçãos de Dudinha, filho do Messias, dono do laranjal irregular no Sítio Atibaíba. Barbabás, Pedalinho, Messias e Dudinha fazem reuniões suspeitas por lá. Corados, Barbabás alisa a barba, enquanto que Messias guarda à Bíblia.
Injuriado, por ser uma pessoa honesta, Ponto Pilatos observa à carinha de Barbabás e Messias, falando que numa situação daquela jamais lavaria às mãos, porque trazia uma vara de quixaba em uma delas e por lá não havia caso de covid-19 para higienizá-las. Olhando para cima, quase que fazendo uma prece aos céus para se acalmar, viu uma colmeia em um galho do sinédrio acima das cabeças dos agora “padrastos das águas”.
Calmamente, pede a ambos que se aproximem para o veredito sobre o caso. Juntos, Barbabás e Messias quase de mãos dadas, esperam ansiosos a fala do nobre julgador do litígio. Lembrando-se de Moisés bíblico ao levantar o cajado em frente ao Mar Vermelho, Ponto Pilatos com sua vara de quixabeira “mágica”, de um golpe certeira faz cair na cabeça dos inquiridos tão doce colmeia, provocando nos dois fariseus políticos uma purgação dos pecados e uma debandada que a poeira cobriu. Aos gritos de “abelhas livres”, contudo, estavam soltas, as duas almas purificadas pelos ferrões que vinham do céu, correm como uns condenados a ficar juntos, igual a um consórcio nupcial no nordeste, neste caso, quase literalmente, porque Barbabás e Messias não largavam às mãos untadas de mel.
        Segundo um fuxico que se propaga pelo sertão até nossos dias. Ponto Pilatos, não lavou as mãos, mas desceu à vara literalmente depois que seus olhos abriram pela luminosidade do candeeiro e das palavras de João da Luz, unindo duas almas adversárias da política local com a graça que veio do céu, mantendo assim a fama de conciliador do vilarejo que até hoje espera os canos, torneiras, e claro, a conta de água que virá juntamente com a canalização.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

"Não me tires o que não me podes dar!... Deixa-me ao meu sol."
- Diógenes de Sinope